Crónica de Alexandre Honrado – Ficção ou realidade?
Tenho escrito muita ficção, é um apanágio, uma sina, como agora se diz um karma, e tenho falado de ficção em mais de mil sítios, umas vezes por isto, outras por aquilo e às vezes até a propósito da mais bela coisa nenhuma.
Um colega do jornalismo – repórter fotográfico que andou pelo mundo com a máquina a tiracolo, de um lado, e comigo, tantas vezes, do outro – fez-me duas perguntas que não esqueço. Infelizmente, ele já só está connosco na saudade que nos separa, inevitável e cruel, mas viria de bom grado aumentar o que já digo.
A primeira pergunta foi esta: sendo eu jornalista e investigador (cada coisa no seu canto e as duas, muitas vezes, na mesma estrada), como é que era capaz de atraiçoar o facto de o ser e aparecer, um bom punhado de vezes, a ficcionar nos suportes mais diversos. Disse-lhe o que hoje repito: somos formatos de imaginário, realidade e simbolismo, e nada é incompatível porque nos fomos gerando e ficando cada vez mais complexos (não necessariamente melhores) assim mesmo. Ficção aqui, realidade aqui, sem acolás. E disse-lhe ainda: vais ver que um dia isto a que chamamos facto, isenção, essas coisas, será apenas mais um dos lados do prisma com que ficcionamos a existência e não necessariamente o mais importante ou digno.
Adorava ser futurólogo com mais sapiência e acerto e, se o fosse, eu veria a ficção tomar o lugar no futuro, naquilo que é hoje o meu presente, onde as mentiras, as falsas notícias, o esquecimento assumido da vida que se viveu (quando afetou os outros, nomeadamente em atos públicos), a forma como se tecem comentários e elaboram biografia, como se denigre o ser humano sem o conhecer, o modo como se elegem idiotas porque tocaram a flauta mágica encantatória dos ratos, ridicularizando a gaguez de Papagueno (pa-pa-pa-pa-pa-gueno), onde tudo isso é uma realidade que emergiu da ficção que a gerou.
É óbvio que aqui só ficciono, ao encravar na mesma prosa o Flautista de Hamelin, conto folclórico popular, reescrito pela primeira vez pelos Irmãos Grimm e a notável ópera de Mozart, Die Zauberflöt, KV 620, com música do dito e libreto de Emanuel Schikaneder.
A segunda pergunta do meu colega, na época, ao ler uma folha em que eu soltava a imaginação e ficcionava alegremente, foi mais robusta e complexa: se o meu cérebro era normal. Como é que eu criava personagens, diálogos e sobretudo enredos aparentemente do nada. Ali, do papel branco e tímido, saíam vivos, mortos, ressuscitados, monstros e anjos, caminheiros e sedentários, seres inexistentes e existências indignas de o ser. Hoje, saberia responder-lhe.
Só por curiosidade, já me ofereceram a hipótese de ensinar figuras públicas a contar uma história. Dessas figuras que parecem de ficção. Faz parte do caminho, saltitar por entre as pedras. Querem aprender a contar, dizem, até o que não se passou com eles, de modo a que, mais dia menos dia, todos saibam, incluindo os próprios, que foi assim que se passou, o que na ficção se foi fazendo para tomar o lugar de uma realidade sem préstimo nem agrado.
Gostava que fosse ficção o rol de notícias que leio na imprensa, da cerveja com Rosa Mota, da Rosa morte que anda em julgamento, dos deputados portugueses que nos cobriram de vergonha no Parlamento Europeu, ao votarem contra o salvamento de emigrantes e mais não digo, que esta coluna é decente e não aguenta maus aspeto ou cheiro nauseabundo.
Não é do Halloween, tradição estapafúrdia que tomámos estupidamente como nossa, que vem este horror, esta azia, este mundo de pessoas capazes de autoconsumir-se enquanto odeiam o seu próximo. Não é da ficção. É mesmo da realidade. E isso deixa-me gago de comiseração, medo e horror perante a ignomínia.
Alexandre Honrado
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Uma boa oportunidade não ignorada e que não foi perdida.
Parabéns pelo conteúdo.